“Não quero ser mais só uma estampa de mim mesma” disse Micaela, de 21 anos, com a convicção de quem já tomou uma decisão. A musicista procurou o Judiciário na manhã desta sexta-feira (27/6), para realizar a retificação de nome e gênero, passando a se identificar oficialmente como Micaela Rockenbach de Oliveira, com sobrenome escolhido em razão da religião judaica, que adotou recentemente.
“A religião não autoriza, mas é muito importante para mim. Terei mais autonomia sobre mim mesma”, desabafa Micaela, que se identifica como mulher trans.
O procedimento foi realizado no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania de Mossoró (Cejusc-Mossoró), que realizou a 3ª edição do projeto TRANSformAÇÃO. Iniciativa que oferece, de forma gratuita, a retificação de nome e gênero no registro civil para pessoas LGBTQIA+, garantindo o direito à personalidade e à cidadania.

“Hoje é só o primeiro passo. Pretendo também fazer a preparação hormonal e, talvez, cirurgia”, conta outra beneficiária da ação, Ellie Amora, de 20 anos. “Por uma questão social, não me apresentava como gostaria. Quero que as pessoas me vejam como eu me enxergo: mulher.”
Criado em 2024, o projeto é uma iniciativa pioneira da Justiça Estadual potiguar e já atendeu mais de 50 pessoas transexuais, travestis e não binárias no Rio Grande do Norte. O atendimento é pré-processual — não há necessidade de ação judicial — e pode ser realizado diretamente no Cejusc Mossoró ou em cartórios parceiros, durante todo o ano.
“No mutirão, é possível receber a certidão no mesmo dia. Em outras datas, o prazo é de até 60 dias, sempre de forma pré-processual, exclusivamente no Cejusc”, explicou Saulo Menezes, mediador judicial. Ele destaca que a edição atual conta com o apoio do Centro de Referência de Direitos Humanos do Semiárido (CRDH), que já atua com o público LGBTQIA+.
“Fui muito bem atendida. Tudo foi rápido, prático e com um acolhimento perfeito. Foi muito emocionante”, afirmou Caliópe Sena Rodrigues, estudante universitária não binária — identidade de gênero que não se enquadra nas categorias tradicionais de masculino ou feminino.
“Presenciamos muitas pessoas emocionadas após o procedimento”, relatou Samira Pinheiro, conciliadora, que também realizou a primeira retificação do dia: uma pessoa cisgênera que incluiu os nomes dos avós na certidão.
“Acho que hoje chegaremos a 100 pessoas atendidas”, comentou Eduardo Lacerda, estagiário conciliador e um dos quatro idealizadores do projeto. “As duas primeiras edições foram voltadas apenas ao público trans. Nesta, o atendimento foi ampliado para todas as pessoas interessadas”.
A ação é coordenada por Ana Joelma do Amaral, chefe de secretaria do Cejusc-Mossoró. Ela explicou que, para realizar a retificação, é necessário apresentar RG, CPF, comprovante de residência, título de eleitor, certidão de nascimento ou casamento, CTPS, passaporte (se houver) e carteira de identidade social (se houver). Também são exigidas certidões negativas de antecedentes cíveis e criminais (estadual e federal), da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar (quando aplicável).

Dignidade
Além da retificação do registro civil, o projeto também oferece orientação jurídica, acolhimento de denúncias de LGBTQ+fobia e violência institucional. O TRANSformAÇÃO pretende ainda incluir rodas de conversa sobre saúde, educação e direitos da comunidade, além de atendimentos médicos e psicológicos pontuais.
“A primeira edição já nasceu com o propósito de dar ao projeto a importância que ele merece. O que estamos fazendo é abrir espaço na sociedade para uma realidade que existe e precisa ser acolhida. A sociedade não pode ignorar isso”, declarou o juiz Breno Valério, diretor do
Foro de Mossoró.Segundo ele, as mudanças são resultado de uma “cadeia sucessiva” de precedentes. “Tudo é um processo, uma construção — como a própria
Constituição, que consagra a dignidade da pessoa humana. Além disso, pactos internacionais reafirmam essa meta. A partir disso, os tribunais começam a decidir e fornecer soluções desburocratizadas, como essa”.O magistrado concluiu: “O Direito caminha um passo atrás dos efeitos que ele próprio gera na sociedade. A sociedade muda, e o Direito também precisa se reformular. É um ciclo. Hoje, estamos dando esse passo anterior aos efeitos sociais que esse projeto pode trazer”.
FONTE/CRÉDITOS: TJRN
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